Todo ano, na segunda quinzena de dezembro, vejo uma estória se repetir. A lembrança da solidariedade é mais presente, mais citada, mais efetivada. Desde que tenho 10 anos, observo o mesmo ritual ao meu redor, em relatos de amigos, na mídia.
Só agora começo a entender do que se trata.
O modelo de consumo capitalista é pensado – não apenas na “grande política”, mas em todos os espaços cotidianos – para gerar a desigualdade social. As pessoas passam a maior parte de suas vidas trabalhando, gerando riquezas, para novamente disponibilizá-las neste mesmo mercado de consumo. As próprias pessoas são itens de consumo.
Uma vez conscientes de que fazem parte deste esquema desigual, tomam medidas para mudar esse quadro. A maior parte das pessoas, no final das contas, é cheia de boas intenções. Decidem, portanto, “ajudar o próximo”. Este “próximo” é, quase sempre, visto como o eterno outro – o coitado que precisa de “caridade”, o “pobre”, o cidadão que sequer sabe o que é ser pobre, pois está num nível abaixo da dignidade humana. Bate o desespero da desigualdade social, que até então era somente uma ideia geral de “sociólogos de esquerda”. A partir de uma espécie de tomada de consciência, se torna real.
O “outro”, neste caso, nunca é visto como semelhante: um cidadão de direitos. Ele não precisa reivindicar nada, pois não “tem” – por determinação divina, será? – direitos, só restando a caridade. A prefeitura não apoia a creche comunitária? Paciência. A polícia mata e vai embora? Que tragédia. As escolas públicas da comunidade não funcionam? Malditos políticos, “todos ladrões”.
Afinal, esta parece ser a função de Papai Noel: tomar o lugar da política, retirar a referência social e cultural do Natal e colocar em seu lugar a “magia e a alegria que tomam conta de nossos corações”. A desigualdade social passa a ser um problema “de cada um de nós” – mesmo que existam pessoas legalmente responsáveis por combatê-la, além dos cidadãos comuns que, claro, deveriam ter um dever moral em fazê-lo, e não o fazem por falta de pressão popular organizada.
Este pequeno ato de “solidariedade” – sempre despolitizada, para não dar lugar a mudanças estruturais na vida da cidade – é seguido de uma seção de relaxamento pós-moderno: compras, compras, compras. Pessoas extremamente carentes – de afeto, de consciência social, de cidadania política – gastam pelo menos dez vezes mais com compras para si e para aqueles próximos de seu núcleo do que se gastou com aqueles a quem chamaram de “carentes”. E as compras nem sequer são referenciadas a partir de sua origem social ou cultural – em geral, são adquiridas a partir de lojas comerciais, que visam exclusivamente o lucro e o bem estar financeiro de classes que já possuem um ótimo “estar” financeiro. Produtos sem qualquer história.
Portanto, voltando aos meus 10 anos – 18 anos depois – eu me pergunto: de qual solidariedade estamos falando?
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(*) Gustavo Barreto, jornalista. Contato pelo @gustavobarreto_.
Jornalista, 41, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis em https://amzn.to/3ce8Y6h). Acesse o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0384762289295308.
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