RECOBRAR OU LUTAR POR UMA NOVA CULTURA DO “PÚBLICO”?

Alder Júlio Ferreira calado, autor destas notas sobre reações contra os mais recentes escândalos ético-políticos, no Brasil, é sociólogo e educador popular, membro do Centro Paulo Freire de Estudos e Pesquisas, e acompanha, desde meados da década de 1960, a caminhada dos Movimentos Sociais Populares e das Pastorais Sociais, especialmente no Nordeste. É autor de vasta obra literária científica e ensaística, dentre a qual destacamos: Pelas veredas libertárias da Utopia-Ensaios de um aprendiz (João Pessoa, Idéia, 2000) e a coletânea por ele organizada, Revisitando Paulo Freire (João Pessoa, Idéia, 2008). É membro do grupo Nós também somos Igreja.

Na formação sócio-histórica do nosso imaginário coletivo, que sobre nós incide tão fortemente, de modo a afetar ampla maioria dos segmentos de nossa sociedade, o quê tem significado mesmo a idéia dominante de “público”, aqui tomando o vocábulo em sua referência particular à coisa pública? Quando normalmente se fala em “público” quê idéias nos vêm espontaneamente ao espírito? A que se deve essa idéia dominante e quais suas conseqüências práticas até hoje? O que nos é possível fazer diante dessa realidade?

Ao calor dessa onda mais recente de escândalos ético-políticos que expõem as vísceras do Senado desta “ré-pública” (seguindo-se ou acompanhando a série de outros desmandos do Congresso, do Executivo e do Judiciário), temos ouvido declarações emblemáticas da boca de figuras “representativas” tais como o Senador Duque, do Rio de Janeiro. Quando interpelado sobre se não o preocupa a opinião pública, diante de suas recentes declarações (por exemplo, a de que os famigerados atos secretos são uma bobagem…), foi incisivo “sua excelência”: “Nem me preocupo com a opinião pública, porque ela é volúvel; a opinião pública flutua”… Isto é apenas a pontinha do nosso “iceberg” político.

Dói-nos ter consciência de que a declaração do senador, por mais constragedora e impactante, tem respaldo empírico. Diante da sucessão infindável de denúncias do mundo político-partidário e dos aparelhos de Estado, a reação imediata, da parte da enorme maioria da sociedade, é de manifestação de certa indignação momentânea. Não tarda, isto vai ao esquecimento, até porque dá lugar a tantos outros fatos novos e até mais graves. Prevalece a sensação de ceticismo ou de impotência. A “opinião pública” vai se acostumando com tais fatos.

Para a enorme maioria da população, esse é o estado “normal” do mundo político. Políticos são eleitos para favorecer os seus simpatizantes e eleitores. Primeiramente, os familiares. Depois, os amigos e os de quem receberam votos. Indignar-se contra Sarney, por quê? Não é assim mesmo que funciona o mundo político, “desde sempre”?

Essa parece ser a concepção dominante de “público” em nosso imaginário coletivo. E vem de longe. Sobre isso tem razão o senador Duque, por mais asco que me provoque. O problema que aqui levantamos é se isso corresponde mesmo à idéia de “público”, numa perspectivo ético-política, não como algo relativo ao Estado e seus aparelhos, mas ao sentido etimológico e ético do vocábulo “público”, que remonta a “Populus”, ao conjunto dos membros de um povo, e portanto ao conjunto da sociedade civil. Nesse sentido, o que normalmente se veicula de “público” tem pouco ou nada a ver com os interesses do conjunto da sociedade, e não de uma minoria de privilegiados, assaltantes dos bens e serviços do conjunto da sociedade.

Os clássicos da Revolução Francesa ajudam a recompor o sentido ético-politico do conceito de “público” e de “Respublica”. Claro que, depois de instalada no poder, a burguesia fez outra coisa: apropriou-se enquanto classe das riquezas públicas, ocasionando assim uma trágica involução, ao converter privilégios de alguns em pretensos direitos. Daí para a conversão do sentido de público como algo ligado necessariamente a qualquer estrutura estatal/governamental foi um pulo. Sendo assim, a sociedade pouco ou nada se mobiliza pelo público, aqui identificado como “coisa do Governo”. “Vou lá me preocupar se roubam ou depredam os equipamentos de uma praça ou de uma escola pública?: Isto não meu, é do Governo”…

A rigor, ainda não tivemos uma verdadeira República, no Brasil, no sentido de respeitar as decisões do conjunto da soicedade, do conjunto da população. A ponto de nos convencer a todos e a cada um, a cada uma, de que defender o espaço público é defender também as coisas minhas e de minha família. Não apenas “do Governo”…

Nossas fundas raízes colonialistas e escravistas ainda persistem largamente. Às vezes, de modo sutil; outras, abertamente. Estrutura que se enraíza na alma de parte considerável da população, a ponto de mostrar-se cética e impotente, quando se vislumbra uma possibilidade alternativa.

Há quem defenda legitimamente uma saída intra-sistêmica. Bastaria reformar a política. Bastaria escolher pessoas decentes. De minha parte – e venho estudando isso há um bom tempo, não apenas por injunções da profissão, mas como um trabalhador socialmente engajado – já não aposto em reformas, especialmente as feitas justamente por quem usufrui desses privilégios. Entendo que a estrutura organizativa de nossa sociedade está comprometida desde as raízes. Mudança para valer só a longo prazo, e pelo protagonismo de outras forças não comprometidas com essa estrutura.

Uma nova cultura política é algo em que aposto, desde que protagonizada por forças sociais alternativas ao sistema imperante – movimentos sociais populares e outras organizações de base da sociedade civil, efetivamente enraizadas nas classes populares. O cerne dessa aposta está no investimento contínuo – de curto, médio e longo prazos – numa cultura consultiva, ou seja, na gestão da sociedade por conselhos, por pequenos grupos articulados entre si e com toda a sociedade, não apenas em âmbito local, mas em escala nacional e internacional. Conselhos cuja organização exigirá o regular funcionamento de um regime de alternância, isto é, não se permitirá que as mesmas pessoas ocupem, por muito tempo, os mesmos cargos e funções. Implicará a superação da velha dicotomia entre trabalho intelectual e trabalho manual. São apenas alguns dos vários traços desse esboço de uma nova organização social.

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