Trabalho e trabalhos

É de praxe valorizar o Trabalho e qualidades geralmente associadas a essa atividade, como o esforço, a seriedade, a postura socialmente adequada, que contribuem de alguma forma para o bem estar coletivo. A princípio, nada mais justo, visto que a vida em sociedade, de fato, depende de uma série de serviços realizados em rede pelos indivíduos que a compõem.

Mas até que ponto essa valorização não ofusca ou exclui outros tipos de “trabalho” que não se enquadram na categoria de esforços social e historicamente apreciados? Em que medida a hegemonia do modelo do “homem sério e trabalhador” não deixa de compor uma estratégia inerente às disputas pelo poder e interesses determinados? E será que esse paradigma correlato à moral-cristã (e, mais explicitamente, protestante, conforme Weber), que tão bem se insere na lógica capitalista e desenvolvimentista, não cumpre um papel importante ao confortar os que sempre trabalharam e intensamente o fazem no presente, evitando seu desestímulo, ou alimentando, num plano inconsciente, seu egoísmo?

O conservadorismo pode estar por trás desse fenômeno. A humanidade, por razões tanto naturais quanto culturais, preza pela manutenção de valores e costumes, o que tem como conseqüência a própria construção do conceito de tradição. Mas o Trabalho convencional – categoria na qual se inscrevem desde o banqueiro e o médico ao vendedor e o gari, compreendendo atividades que produzem benefícios ou satisfazem demandas sociais – tem de estar, irredutivelmente, no cerne da tradição? E é esse modelo de tradição (ou a própria Tradição) a única referência possível para as relações sociais?

É difícil adentrar com unhas e dentes essa polêmica questão. No entanto, tais questionamentos são salutares à medida que a identidade das pessoas ainda é muito ligada à sua profissão, aspecto central na conformação de seu status social. E, com isso, a visão predominante de uns sobre os outros leva quase sempre em consideração o trabalho, habilidades e resultados (produtos) ou, ao menos, a postura – séria, esforçada, empreendedora e criativa, características convenientes ao sistema produtivo vigente.

Em paralelo, são desprezados e excluídos socialmente os vagabundos, os pobres, os loucos, os deficientes e todos aqueles que não produzem “riquezas”; que não contribuem direta e materialmente para o funcionamento das engrenagens sociais. E são também desprezados ou subestimados os trabalhos Diferentes, que envolvem atividades que sequer são reconhecidas como tais; aparentemente desprovidas de proficuidade social.

Não causava estranheza o fato de que Einstein, em sua infância, passava o dia observando as formigas de seu quintal?

Certos comportamentos, como o do jovem cientista – que talvez graças a sua observação metodológica e incessante tenha nos brindado com a teoria da relatividade – são, por puro preconceito ou desconhecimento, dissociados de qualquer valor ou aplicabilidade. Lógica perversa que, em certa medida, se repete quando o trabalho de um artista, por exemplo, não é reconhecido como Trabalho, ou quando a profissão de um jornalista é desvalorizada frente à de um advogado. Aliás, quantos pais ou avós não sonham com um filho ou neto médico, engenheiro ou advogado?

É difícil imaginar o número de potenciais talentos que foram desperdiçados por não se enquadrarem em uma área profissional pré-definida, ou por terem seguido a vontade dos mais velhos, esses sempre preocupados (não sem razão alguma) com a estabilidade, a segurança e o futuro. Quantos deixaram de desenvolver seu talento ou tiveram tal processo interrompido pelo fato de que suas habilidades “não as levariam a lugar algum (conhecido)”?

Seria um delírio pensar que há uma ordem discursiva do Trabalho, na qual certos comportamentos e atividades são inscritos, aceitos e valorizados em detrimento de outros?

Em “A Microfísica do Poder”, Michel Foucault diz que a disciplina é uma forma de poder que institui o indivíduo, uma vez que é justamente a vigilância de outrem e da própria pessoa sobre ela mesma – a qual produz os corpos dóceis – que traz a tona o ser particularizado, destacando-o das massas. A avaliação constante dos cidadãos em função do labor, da produtividade, não deixa de ser uma forma de garantir que todos estejam se portando de maneira adequada, inserindo-se, portanto, nessa lógica disciplinar. Não por acaso, as fábricas modernas tinham a mesma estrutura organizacional das prisões, hospitais, escolas, etc.

Cabe, por conseguinte, considerar que há algum nível de relatividade e teor ideológico na concepção de Trabalho. Pois, no mínimo, o produto das atividades assim categorizadas satisfaz a demandas específicas e conjunturais, além de manterem profunda relação com as disputas pelo poder – embora tal ligação seja velada pelo entranhamento do Trabalho no seio social; por sua naturalização e, claro, pela forte domesticação dos corpos dóceis.

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