Carta do povo do rio. “Eu viro carranca hoje, para defender o velho Chico”

Nós camponeses e camponesas, pescadores e pescadoras artesanais, indígenas, povos de terreiros e quilombolas do São Francisco, movimentos sociais e pastorais, decidimos “Virar Hoje Carranca, pra Defender o Velho Chico”. Nada melhor do que abrir nossas lamúrias e anunciar vida, no chamado “parlamento da Bacia do Rio São Francisco”.

Constatamos indignados nos últimos dez anos, a morte gradativa do Velho Chico. Por causa das barragens hidrelétricas, vimos muitas espécies de peixes desaparecerem, diminuírem em tamanho e qualidade, em função da baixa vazão, provocada pela Chesf.

Constatamos embravecidos, o Cerrado e a Caatinga serem brutalmente desmatados e as matas ciliares desaparecerem para dar lugar aos grandes empreendimentos (turísticos, grandes irrigações, especulação imobiliária, mineração, aquicultura…) e ações privatistas das terras de beira rio que vem impedindo os pescadores artesanais de terem acesso às águas, ilhas, lagoas e manguezais, como no caso dos mangues da Foz do Velho Chico espoliado com a carcinicultura.

Constatamos exasperados a terra e a água sendo contaminadas por altos índices de agrotóxicos e adubos químicos, empreendidos pelo agronegócio devastador, inclusive por órgãos como a CODEVASF.

Constatamos as Cidades e povoamentos, continuarem jogando lixo e esgotos no Rio São Francisco, e vimos nesta região muitos parasitas e corpos estranhos presentes em nosso ecossistema, e o poder público com projetos enganadores de esgotamento sanitário e poucas ou nenhumas medidas satisfatórias serem realizadas.

Constatamos indignados, que a baixa vazão vem provocando altos índices de poluição como a ‘mancha escura’ nas águas do Cânion São Francisco que deixou cidades e povoados sem abastecimento de água e o problema ainda permanece, sobretudo, nos povoados ribeirinhos, comprometendo inclusive, a qualidade do pescado e sua comercialização.

Constatamos ainda, o surgimento das cianobactérias e cianotoxinas na barragem de Serrinha, em Serra Talhada-PE, cujas águas estão impróprias para o consumo humano e a pesca. A saber, a cianotoxina além de ser resistente à fervura da água, provoca câncer.

Diante desta situação crítica, não podemos acreditar que a seca, enquanto fenômeno natural do Semiárido, seja responsabilizada mais uma vez por este colapso, sendo que os grandes irrigantes continuam usando a mesma quantidade de água para o agronegócio de exportação e a Chesf mantem uma baixa vazão para geração de energia. Sabemos que, o que interessa para Chesf e para a lógica do atual modelo de desenvolvimento econômico predador é o estoque da perspectiva futura da matriz energética, com mais barragens e ainda usina nuclear propostas para a região de Itacuruba – PE, além dos canais da transposição do rio e as mini-transposições como o canal do Sertão em Alagoas para irrigar terra de rico.

Diante destas e outras questões, propomos verdadeiramente, uma POLÍTICA DE REVITALIZAÇÃO DO SÃO FRANCISCO, que leve em consideração as reflexões e as necessidades do povo, começando com uma REVITALIZAÇÃO DO PRÓPRIO COMITÊ DE BACIA, como:

Não podemos aceitar mais, o desrespeito com que o Comitê de Bacia tem tratado o povo do rio, em especial os pescadores artesanais, colocando-os na mesma categoria com turismo e lazer na cadeira de representação no Comitê, demonstração da falta de reconhecimento das comunidades pesqueiras como tradicionais, desconsiderando, a Convenção 169 do qual o Brasil é consignatário e o Decreto 6.040/2007 que trata sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT. Portanto, os pescadores artesanais não podem continuar a ser vistos como os predadores do São Francisco, mas, como “guardiões do Rio”, pois de fato são eles os guardiões.

Queremos um Comitê de Bacia autônomo, que leva em consideração as reflexões e necessidades do povo, que construa ações efetivas e articuladas de Revitalização do São Francisco com: saneamento básico e convivência com o Semiárido, uso sustentável e racional da terra e da água, manutenção e proteção da biodiversidade e ecossistemas do rio, recuperação de matas e nascentes, melhoria da qualidade da agua e a proteção as populações que possuem um modo de vida diferenciado culturalmente e socialmente. Precisamos reaprender com nossos ancestrais, o que talvez perdemos a muito tempo atrás, a convivência sábia e equilibrada com os rios, matas, bichos e gentes. Voltemos a ser humanos Hoje, para que assim construamos um modelo de desenvolvimento capaz de gerar vida e não morte.

Subscrevemos,

· Povo Indígena Truká-Tupan de Paulo Afonso
· Povo de Terreiro – Abassà da Deusa Oxum de Idejemim
· Movimentos dos Pequenos Agricultores – MPA
· Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais – MPP
· Conselho Pastoral dos Pescadores – CPP
· Colônia de Pescadores Artesanais Z26 de Delmiro Gouvéia – AL
· Colônia de Pescadores Artesanais Z30 de Piranhas – AL
· Colônia de Pescadores Artesanais de Petrolândia – PE
· Colônia de Pescadores Artesanais Z 86 de Glória – BA
· Associação de Pescadores e Pescadoras Artesanais de Olho D’Água do Casado – APESCA
· Associação de Pescador Artesanal do Povoado Salgado – SALGATUBA PESCA
· Associação Quilombola da Comunidade Cruz
· Instituto Acção
· Sociedade Brasileira de Ecologia Humana – SABEH
· ACRANE – Associação Cultural Raízes Nordestinas
· AGENDHA – Assessoria e Gestão em Estudos da Natureza Desenvolvimento Humano e Agroecologia
· Território da Cidadania de Itaparica

Paulo Afonso – BA, 28/05/2015.

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