Nascido em 1982 (*)

Pede perdão
Pela omissão
Um tanto forçada
(Trecho censurado de Samba de Orly,
de Vinicius de Moraes, Toquinho e
Chico Buarque, 1970)

O fotojornalista americano Errol Morris expôs na última edição da Columbia Journalism Review uma interessante visão sobre biografia e História. Morris lançou a ambiciosa série de ensaios Zoom, na página do New York Times, em que propõe que a História não siga o padrão linear e cronológico. “E se pudéssemos pensar a História a partir de um ponto específico. Por meio de uma fotografia, por exemplo”. O filmmaker completa que raramente se olha para além do que uma fotografia poderia apresentar. “A maioria das pessoas quer acreditar que sabe exatamente o que há numa fotografia (…) Nós andamos pelo mundo, não é o mundo que anda dentro de nós”.

Esta discussão sobre o passado e a forma como se constroem as biografias é particularmente importante para aqueles que, nascidos em outro contexto histórico, sabem a importância de se discutir o que ocorreu em outros tempos. Particularmente em 1968. Este ano representa um marco no processo histórico brasileiro e mundial, seja qual for a visão ou os nomes atribuídos à série de acontecimentos.

A História é particularmente importante dentro de um sistema de significação (ou representação) e permite, entre outras coisas, que as novas gerações utilizem seus ensinamentos para tomar decisões melhores e mais sábias do que aqueles que estiveram no poder outrora. Ou que decidam por re-significar o poder.

Parece mais ou menos claro – seja pela observação dos relatos históricos, seja pela observação da realidade atual – que o golpe de 1964 foi resultado de um longo processo de articulações de setores conservadores de uma sociedade composta de muitos “inocentes úteis”, como destacou o escritor e ex-preso político Celso Lungaretti, e setores estrangeiros descontentes com as amplas reformas sociais que estavam sendo promovidas no País.

Finalmente um presidente estava dando trabalho – tanto à elite brasileira e internacional saqueadora das riquezas nacionais, quanto àqueles que buscavam um rumo digno para todos os brasileiros, particularmente para os do “andar debaixo”, conforme Florestan Fernandes. A estes últimos, dava trabalho pelo fato de delegar a pessoas competentes e comprometidas com os valores nacionais, sem deixar de lado o internacionalismo, responsabilidades de iniciar um ciclo desenvolvimentista no Brasil.

Mesmo sem ignorar o argumento de que há em curso uma campanha de difamação contra as Forças Armadas brasileiras, por conta dos erros históricos e atuais de alguns de seus membros, é necessário registrar a estupidez do regime militar a partir de 1964. Seu núcleo duro, que falava em nome da Nação, não tinha sequer um projeto nacional e independente. Perseguiu, torturou e assassinou importantes lideranças, muitas das quais vivas para relatar tais acontecimentos, e o fez indiscriminadamente.

Quando atuei na Fundação Oswaldo Cruz, por exemplo, pude tomar conhecimento da perseguição do regime militar, que fechou à época alguns dos mais importantes cursos na área de biomedicina e interrompeu o trabalho de importantes cientistas brasileiros. Também no teatro, os militares enxergavam o comunismo até mesmo em peças que propunham apenas a divulgação da cultura popular e genuinamente nacional.

O processo histórico é – não perca de vista – complexo. Como é a História. Hitler não é o mal absoluto nem Mahatma Gandhi o divino. Lembremos que muitos militares brasileiros foram, eles mesmos, cassados. Lembremos ainda episódios como a prisão de Florestan Fernandes na Universidade de São Paulo, quando o guarda que estava designado para cumprir a sentença chegou ao local portando livros do autor, pedindo gentilmente um autógrafo e se desculpando por ter de obedecer a ordem superior. Mas essa – a História – temos muito tempo para discutir e re-discutir.

O que é urgente, no entanto, é entendermos que, apesar de não-linear, a História muito nos serve para as ações de hoje. A significação do movimento de 1968 como um grupo unido, coeso e internacional é particularmente decisivo para aqueles que, hoje, enfrentam uma outra ditadura: a financeira. O domínio do capital – ou, se preferir, dos valores econômicos – sobre a vida cotidiana é lesivo para qualquer sociedade que se pretende humana. Somos mais do que o lucro e a propriedade privada. Somos mais do que repressão e privação de liberdade. Somos mais do que atualmente nos dizem que somos. Nosso valor é mais que monetário e temos a possibilidade de obter a auto-determinação.

Era isso pelo que lutavam aqueles que, juntos, compartilhavam sonhos em 1968. E esses sonhos nós – nascidos em 1982 ou fora do contexto de 1968 – entendemos.

(*) Especial para o blog do Jornal Laboratório da FACHA. Gustavo Barreto, 26, é estudante da Escola de Comunicação da UFRJ, radialista, integrante do Movimento Humanista e editor da Revista Consciência.Net (www.consciencia.net).

Samba de Orly
Vinicius de Moraes, Toquinho e Chico Buarque/1970

Vai meu irmão
Pega esse avião
Você tem razão
De correr assim
Desse frio
Mas beija
O meu Rio de Janeiro
Antes que um aventureiro
Lance mão

Pede perdão
Pela duração (Pela omissão)*
Dessa temporada (Um tanto forçada)*
Mas não diga nada
Que me viu chorando
E pros da pesada
Diz que eu vou levando
Vê como é que anda
Aquela vida à toa
E se puder me manda
Uma notícia boa

* versos originais vetados pela censura

Nota sobre Samba de Orly
Por Humberto Werneck

Juntos, viram o homem pisar pela primeira vez na Lua, em julho de 1969. À distância, acompanharam o surgimento da luta armada no Brasil, o primeiro seqüestro de um embaixador estrangeiro para obter a libertação de prisioneiros políticos, o dramático esfarinhamento da esquerda brasileira em miríades de grupúsculos. Em novembro, Toquinho resolveu voltar. No último dia, foi ao apartamento de Chico e lhe mostrou um samba ainda sem letra. Só então teve coragem de contar que estava partindo. “Fiz essa música de saudade mesmo”, disse, “vou embora amanhã”. Era o Samba de Orly, com todo aquele cl
ima de exílio, de impossibilidade. Toquinho conta que Chico fez na hora os versos finais:

E diz como é que anda
aquela vida à toa
e se puder me manda
uma notícia boa

Bem depois, quando estava preparando o LP Construção, Chico convidou Vinícius para ajudar na letra. Três dos versos que o poeta escreveu:

pede perdão
pela omissão
um tanto forçada

seriam podados pela censura. “Omissão” teve que virar “duração”, e “um tanto forçada” deu lugar a “dessa temporada”.

© Copyright Humberto Werneck in Chico Buarque Letra e Música, Cia da Letras, 1989

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