Hoje o Eduardo foi Morto no Complexo do Alemão

Ele só tinha 10 anos. Mas, morreu de forma brutal com pedaços da morte entrando na sala da mãe no rápido instante que foi até a porta de casa.  Morreu também um pouco de nós, ou não? Morreu um pouco da nossa sensação de luta, ou não? Porque, agora, exatamente agora, diferentes amigos me dizem o mesmo: – me sinto impotente!

Ouvi isso de diferentes pessoas, idades e lugares. Desde uma adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro a um amigo de mais de 40 lá no Rio Grande do Sul. “Podia ser qualquer um aqui de casa. Podia ser alguém que conheço”, ambos disseram.  Ouvi também de uma amiga mãe de dois filhos, moradora de Madureira, na Zona Norte da cidade e de outra amiga jornalista de Brasília: “pensei no meu filho sentado no sofá”. Ouvi ainda de um chargista famoso de causas sociais, acostumado a desenhar com a ponta do lápis sobre diferentes tipos de situações: “Diante dessa barbárie, não sei mais o que desenhar. Minha criatividade está nula”. Já de uma amiga pessoal e colunista de jornal ouvi: “Não sei o que escrever. Estou aos prantos”. Enfim, ouvi muitos relatos iguais que expressam o mesmo sentimento: empatia e impotência.

Todos somos Eduardo no coração, ou não?

E a tragédia não foi só com Eduardo Ferreira ontem (02/4). Foi com muitos Eduardos. Na quarta-feira (01/04), uma mãe, de 41 anos, foi baleada com tiro de fuzil dentro de casa. A filha, de 14 anos, correu para tentar socorrê-la. Foi atingida com mais tiros. A mãe está num caixão. A filha no hospital. Onde? Ora, lá no mesmo Complexo do Alemão que no intervalo de 24h está enterrando 5 pessoas da comunidade. Ora, na mesma cidade chamada Rio de Janeiro com favelas pacificadas. Ora, na mesma cidade de muitos Eduardos moradores de outros lugares da cidade.

Lá no Alemão já ouvi muitos relatos, mas alguns me marcaram feito ferro em brasa.  O primeiro foi: “a pacificação é um pisar gradativo no nosso cotidiano. A pacificação nos retirou o que mais diz ter dado: o direito de ir e vir”. Nunca vi uma explicação tão lúcida e simples sobre a militarização da vida. Você já?

A segunda frase foi: “aquele dia não acabou. Vivemos aquele dia até hoje”. Eduardo, infelizmente, está nas estatísticas e nos nossos corações para lembrarmos que essa frase é a realidade histórica sobre aquele 28 de novembro de 2010, data da entrada das Forças de Pacificação no Complexo do Alemão.

A vida no sentido concreto é retirada das pessoas de favelas não pacificadas ou pacificadas como o Complexo do Alemão a conta-gotas, mas a vida no sentido simbólico é retirada diariamente com a velocidade e o tamanho de um tsunami. Eu queria só entender quando vamos parar de nos tocar só quando ocorrem essas tragédias, esses fuzilamentos, porque Eduardo foi fuzilado e por um programa de segurança pública chamado Unidade de Polícia Pacificadora.

Quando vamos parar de ter uma empatia só “de momento” para ampliarmos essa empatia a ponto de começarmos a conversar com um olhar do “eu ao nós” e não do “eu’ e/ao “outro”. Ou seja, enxergar a pessoa ali da estatística, a morta, como um de nós? Mas, veja, digo todo dia. Quando nossa empatia vai parar de ser seletiva não só com quem se morre, mas também seletiva  sobre o momento, com a temporalidade de sentirmos essa empatia?

Porque se a conversa permanecer nesse “eu” e “outro” ou nesse “Eu ao Nós”, mas com data de validade, Eduardo vai ser esquecido no meio dessas estatísticas, a impotência vai imperar e a esperança vai se esvair mesmo para sempre. Estaremos dominados pelo medo, pelo risco da perda de alguém amado, pelo temor de gente, presos a falta de alteridade completa as pessoas não vistas como nós. Pedimos mais grades, mais segurança a qualquer custo, mais polícia, mais punição a qualquer preço, menos patamar da idade penal…

Estamos e permanecemos impotentes a tudo que acontece porque a conversa está entre o “eu” e o “outro”. Porque se estivesse entre o “eu ao nós”, iríamos para as ruas com cada ser que víssemos e não diferenciaríamos a morte do Eduardo daquele filho, primo, marido, vizinho, amigo, que está do outro lado do pc, na cama ou no sofá agora.

Se essa empatia não acontecer de forma plena e sim estanque num único momento de dor, seguiremos por essa metáfora de vida por mais décadas e décadas como vejo desde que nasci, nesse contínuo conflito armado disfarçado por uma sensação de segurança que promove um tática de guerra como política de segurança pública revestida de sentidos de paz,  acreditando nisso como uma força, o último mancho do navio possível. Seguiremos precisando nos agarrar a essa boia posta como salvação para termos alguma sensação de segurança. Mas veja: é só uma sensação.

E eu, como muitos cidadãos, como muitos cariocas, fluminenses, moradores de favelas, não moradores de favelas, capixabas, paulistas, negros, brancos, pardos, velhos, crianças, jovens, seja lá qual seja sua identidade nessa vida a reclamar da violência, a contar casos, a se sentir impotente. NÓS vamos seguir contando (ou não) os mortos, paralisados, morrendo de medo desse tal suposto “outro”.

Quanto a mim, na identidade de pesquisadora com um trabalho intitulado “Onde estão os mortos? Silêncios e construções de sentidos da pacificação no Complexo do Alemão” não paro de achá-los e contá-los, sobretudo, nas favelas. Sobretudo no presente.

A estratégia de sobrevivência na favela, como diria um intelectual orgânico do Complexo do Alemão, tem um limite: a bala do genocídio.

Sem mais,
Tatiana Lima

Eduardo Ferreira morto pela PM Complexo do Alemao UPP
Charge de Carlos Latuf mostra caixões nos lugar das gôndolas do teleférico no Complexo do Alemão.

 

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