Chile: “Não sabia que existiam dois tipos de justiça até o que nos aconteceu”

fotoNa noite de 25 de agosto de 2011, quando Manuel Eliseo Gutiérrez (16) morreu por causa de um disparo da polícia durante uma manifestação na capital chilena, ninguém imaginava que, três anos depois, essa tragédia voltaria a abrir o debate sobre a justiça militar no país.
A família de “Mane”, como seu irmão Gerson o chamava, recorda aquela trágica noite como se os relógios tivessem parado naquele instante para sempre.
Havia sido um dia tenso, pois ocorrera uma greve geral convocada pela Central Unitária de Trabalhadores (CUT) em protesto pela falta de resposta a várias demandas sociais. A manifestação em Santiago havia se estendido até a noite com alguns episódios de violência por parte de um grupo de manifestantes.
Perto da madrugada, Gerson, Manuel e outro amigo estavam observando os distúrbios que ocorriam na zona sul de Santiago, parados na intersecção das ruas Américo Vespúcio Sul e Amanda Labarca, quando escutaram três tiros.
“De repente, Manuel, que caminhava a um metro de distância de mim, caiu no chão. Vi que tinha um buraco no meio do meio do peitoral, do qual saia muito sangue”, disse Gerson.
Com a ajuda de vizinhos, Manuel foi levado a um centro médico onde morreu por causa de uma parada cardiorrespiratória, devido ao ferimento da bala no tórax.
O jovem estudante não foi a única vítima dos disparos. Nessa mesma noite, outro jovem, Carlos Andrés Burgos Toledo, também foi atingido por um tiro no ombro direito.
Manuel era filho de um pescador artesanal e sua mãe cuidava da casa. Era o mais novo de quatro irmãos. “Era uma pessoa muito alegre. Para todos tinha uma piada. Queria estudar, ter uma carreira. Em algum momento, inclusive, queria ser carabineiro para poder levar sua família a diante”, explicou Gerson.
Justiça Militar
A primeira reação das autoridades foi negar que a polícia estivesse por trás dos disparos, argumentando que deveria ser um possível ajuste de contas entre jovens. No entanto, as primeiras investigações concluíram que agentes da polícia estavam envolvidos nos fatos.
Desde o momento em que se constatou a suposta participação da polícia, o caso ficou a cargo da justiça militar, que no Chile se encarrega de investigar e punir os crimes cometidos por carabineiros e membros das forças armadas, em ato do serviço militar ou por ocasião dele. Em outras palavras, conforme a normativa chilena, condutas que poderiam constituir uma violação dos direitos humanos são investigadas por tribunais militares. Isso põe em risco o direito a um julgamento justo e ao devido processo, dada a falta de independência e imparcialidade dessa categoria de tribunais. Isso ocorre porque os mesmos estão constituídos principalmente por juízes não letrados e membros da própria instituição militar, e pela falta de transparência no processo.
“Nunca havia escutado falar na justiça militar. Não tinha ideia de que existiam dois tipos de justiça até isso nos acontecer”, disse Gerson.
A investigação sobre a morte de Manuel foi levada adiante pelo Segundo Tribunal Militar de Santiago.
Em 6 de maio de 2014, depois de quase três anos, o tribunal condenou o ex-sargento Miguel Ricardo Millacura Cárcamo, autor dos disparos, a três anos e um dia pelo crime de violências desnecessárias com resultado de morte do menor Manuel Gutiérrez, e a 60 dias pelo crime de violências desnecessárias causando lesões menos graves a outro jovem que foi ferido. O tribunal resolveu substituir as penas privativas de liberdade e estabelecer um regime de liberdade vigiada por três anos e 61 dias. Por sua parte, um subtenente que foi processado por encobrir os delitos foi absolvido.
Para a família de Manuel e para os seus advogados, a sentença do tribunal militar mostra um viés de proteção para os fardados. Para eles, uma condenação de pouco mais de três anos com o benefício da liberdade vigiada e a absolvição de quem atuou para encobrir os fatos, não são proporcionais ao crime e mostra a forma débil como o Chile responde às violações de direitos humanos cometidas pela força pública.
“A pena poderia ter sido de até 20 anos de prisão, de acordo com as características e circunstâncias; Embora o tribunal tenha rejeitado a legítima defesa, como alegava o acusado, aplicou a circunstância atenuante de colaboração eficaz com a investigação, o que é falso e só busca favorecer o principal culpado. Além disso, o favoreceram ao não aplicar nenhum dos agravantes contemplados na lei, por isso estamos apelando. Como pode o tribunal considerar como atenuante ele ter colaborado substancialmente com o esclarecimento dos fatos quando o sargento inicialmente negou a seus superiores a utilização do armamento durante a noite dos fatos, limpou a arma e repôs munição para impedir que se descobrisse que a havia usado?” disse Cristián Cruz, advogado da família de Manuel.
Atualmente, o caso de Manuel Gutiérrez está sendo apelado em uma corte marcial.
A família não sentiu até esta data que tenha recebido uma reparação adequada pelo crime. Para eles, houve falta de apoio efetivo por parte das autoridades, falta de atenção psicológica, ausência de assistência econômica e, muito menos, justiça. O Estado chileno tem a obrigação, sob o direito internacional, de reparar o dano causado por seus agentes.
“Não queremos que o mesmo volte a ocorrer. Não queremos outro Manuel. Sabemos o que é perder um ser querido, perder um filho, um irmão, um neto, perder um tio e, no meu caso, um sobrinho. É a maior dor que se pode sentir”, afirmou Gerson.
Fonte: Anistia Internacional-Brasil
http://anistia.org.br/direitos-humanos/blog/chile-%E2%80%9Cn%C3%A3o-sabia-que-existiam-dois-tipos-de-justi%C3%A7a-at%C3%A9-o-que-nos-aconteceu%E2%80%9D-2

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