No limiar de uma eleição farsesca

A vitória de Jair Bolsonaro no pleito presidencial registrará a dimensão do desastre histórico vivido pelo mundo do trabalho no Brasil.  Porém, o capitão histriônico é um fenômeno sobretudo aleatório de processo patológico em marcha há décadas no Brasil, facilmente perceptível em suas linhas gerais. Haveria apenas paradoxo na presente incapacidade de enorme parte da “esquerda brasileira” de compreender e se antepor a esse drama, se ela não tivesse há muito passado de solução a parte do problema, com as exceções de sempre.

Para os analistas comprometidos com o mundo do trabalho é já um truísmo que o petismo e o lulismo contribuíram por longos anos para a desorganização, despolitização e desmoralização do movimento social e da população brasileira. Já foram descritos em detalhes os passos da metamorfose do PT e da CUT de organizações anti-capitalista e classista, respectivamente, em meados dos anos 1980, em braços ativos da defesa e sustentação da ordem que haviam prometido revolucionar, em verdadeiro processo de incrustação ao Estado e à ordem capitalista, não muitos anos mais tarde.

A adoção pelo petismo e lulismo das políticas do grande capital, sobretudo financeiro, não resultou de conluio de renegados reunidos por Lula da Silva e Zé Dirceu, seduzidos por recompensas materiais e imateriais. Os milhares de promotores dessa hecatombe surfaram apenas o refluxo social no Brasil, no contexto da derrota mundial dos trabalhadores, quando do tsunami neoliberal dos anos 1990. A dissolução da URSS abriu Era Contra-revolucionária na qual a vanguarda ampla dos trabalhadores passou a descrer de seu programa para a superação da crise que vive.

O petismo e o lulismo foram e são sobretudo espécie de sintoma ativo de enfermidade social de raízes profundas. Jamais procederam os devaneios de esquerda auto-proclamada revolucionária de “crise de direção” que, se superada, iniciaria poderosa contra-ofensiva social. León Trotsky fundiu aquela proposta para uma época em que o impulso da vanguarda operária mundial era travada por direções traidoras, no contexto da vigência de Era Revolucionária.

Centralidade Operária

O grande problema atual do Brasil não é de “crise de direção”, mas de constituição do movimento social, em um sentido lato, que realizou transição muito incompleta de classe em si para classe para si. Handicap negativo certamente agravado pela ação deletéria do petismo e do lulismo e de seus associados, que chegaram ao requinte de promover fantasiosa extinção estatística da classe trabalhadora no Brasil, metamorfoseada em feliz e multitudinária “classe média” imaginária.

A dificuldade do operariado de se propor, para a sociedade como um todo, como “centro” referencial na esfera política, social, cultural, etc. fortalece igualmente a dificuldade de constituição de direção classista capaz de contribuir à superação daquele impasse. A fragilidade mundial dos trabalhadores dificulta por sua vez que o mundo do trabalho e as pequenas organizações classistas e socialistas do Brasil se apoiem em conquistas e experiências internacionais vitoriosas.

Também interessada em participar na administração da ordem capitalista, enorme parcela da “esquerda brasileira” abraça as reivindicações civis-cidadãs e identitárias [de raça, gênero, nacionalidade], dando as costas aos trabalhadores e a seu programa, que abordava aquelas questões em um viés social. Constituem-se como organizações de programa pequeno-burguês e anti-operário, que se reivindicam, en passant, do socialismo, agravando a forte confusão política atual.

O epifenômeno Jair Bolsonaro registra o momento de salto qualitativo patológico de tendências que germinam há longas décadas na sociedade brasileira. O Brasil colonial [1530-1808], imperial [1822-1889] e a Primeira República [1889-1930] foram sociedades semi-coloniais, nas quais as decisões econômicas centrais e parte substancial da produção eram dominadas e captadas por capitais exteriores hegemônicos, mesmo quando as classes dominantes lusitanas, luso-brasileiras, imperiais e republicanas controlavam a ordem político-social.

Avanços e Recuos da Ordem Semi-Colonial

Em dois momentos de nossa história houve reversão tendencial da dominação semi-colonial, com maior domínio das classes dominantes tupiniquins sobre país: na Era Getulista [1930-1945; 1951-54] e nos anos pós-1967, quando da Ditadura Militar [1964-1985]. Como chefe da Revolução de 1930; presidente, após 1934; ditador de 1937-45, Getúlio Vargas expressou movimento de radicalização da industrialização autônoma, centrado no RJ e SP, voltado para o mercado interno e apoiado em capitais nacionais [públicos e privados]. Aquele processo industrialista fortaleceu fisicamente o proletariado industrial, mantido na submissão político-ideológica pela coerção ditatorial-populista e pelo colaboracionismo pecebista.

O retorno de Vargas à presidência [janeiro de 1951-agosto de 1954], já sob o ataque direto do imperialismo estadunidense, registrou o início da defecção das classes industriais nacionais do padrão tendencialmente autônomo de industrialização, processo que se radicalizou nos governos de JK e, sobretudo, de Jânio Quadros. Estes últimos registraram a necessidade de superação pela força do desenvolvimentista apoiado em capitais e no mercado interno, que fortalecia igualmente os trabalhadores. Essa ruptura se materializou no golpe militar de 1964, empreendido através da associação do imperialismo  ao capital industrial e bancário nacionais e ao latifúndio.

Na corrida após o 31 de março de 1964, venceu Castelo Branco, representante do liberal-imperialismo, que propunha a privatização das grandes empresas públicas e o escancaramento do país aos capitais e mercados mundiais. O país desossado seria devolvido aos civis, sob vigilância militar.  Com o avanço da oposição impulsionada pela crise econômica, aquele projeto foi defenestrado por militares “nacionalistas”, em representação do industrialismo paulista [Delfim Netto]. Eles retomaram o projeto getulista de um “Brasil Grande”, apoiado porém nos capitais mundiais e em produção escoada para o exterior, o que permitia forte arrocho salarial, devido ao recuo de importância do mercado interno, que perdeu para sempre a importância relativa da Era Getulista.

Os militares de 1967 expressaram facções então hegemônicas da burguesia sobretudo paulista interessada em associação tendencialmente autônoma com o capital mundial, no contexto de exploração crescente dos trabalhadores. Eles ampliaram as grandes empresas públicas e criaram novas, tudo ao contrário do proposto pelo imperialismo. Retomaram o projeto getulista de indústria bélica e do domínio da arma nuclear. Empreenderam política internacional “pragmática”, para abrir mercados, não raro em confronto direto com o governo USA – relações com o movimento de libertação de Moçambique, de Angola, etc.

 Renúncia Burguesa

Enquanto funcionou o “desenvolvimentismo militar”, recuou a submissão semi-colonial. A crise econômica mundial de 1975 lançou porém às estrelas as taxas móveis dos empréstimos internacionais e fez despencar as exportações nacionais. O que pôs crise a expansão econômica apoiada no pagamento dos empréstimos com os lucros das exportações. Expansão econômica viabilizada por trabalhadores mantidos parcialmente na submissão pela expansão do mercado de trabalho e das remunerações, em contexto de super-exploração do trabalho. O “Milagre” criara um jovem e combativo proletariado [metalúrgico, bancário, construção civil, etc.] que retomou a luta sindical, contra a ditadura e os patrões, pela recuperação dos salários confiscados sobretudo através da inflação.

Nesse processo, em meados dos anos 1980, em salto de qualidade no nível de consciência e organização, criaram-se o PT e a CUT,  único momento em nossa história em que os trabalhadores se ensaiaram como alternativa geral para toda a sociedade, precisamente quando as classes industriais nacionais empreendiam, com o fracasso do “desenvolvimentismo de coturno”, seu “canto de cisne”, abandonando qualquer pretensão a dirigir a construção de nação minimamente autônoma, assustadas igualmente pelo surpreendente protagonismo dos trabalhadores da cidade e do campo.

Todos os governos que se seguiram à “redemocratização” controlada do país, se entregaram, sem peias, à submissão do grande capital, ao se dedicarem à perseguição incessante das exportações, para o pagamento da dívida internacional. Collor de Melo e sobretudo FHC realizaram a farra da venda das grandes empresas públicas ao grande capital, em um primeiro golpe violento ao capital monopólico público nacional.

A moeda nacional valorizada dopava a classe média, que corria saltitando para Miami, enquanto prosseguiam a desnacionalização e internacionalização da economia, festejadas pela mídia monopólica. Aprofundava-se mais e mais o caráter semi-colonial do país, assinalado pelo controle de fato do Banco Central e das grandes decisões econômicas por funcionários do capital financeiro.

A Era Petista

A crise social em radicalização e a profunda desmoralização de FHC e do PSDB, quando de seu segundo governo, levaram à entrega do governo a Lula da Silva e ao PT, comprometidos havia muito com o grande capital e o social-liberalismo. Não houve quebra de continuidade de qualidade entre as administrações anteriores e as petistas que as sucederam. Seguiu-se e radicalizou-se o escorcho nacional pelo capital financeiro, facilitado pelo direito ao saque despudorado da economia popular através dos empréstimos consignados; juros astronômicos dos cartões de crédito e “cheques especiais”, etc.

Procedeu-se a expansão do consumo da produção industrial através de voraz endividamento familiar, que hoje corrói praticamente a quase totalidade da sociedade, dividida em devedores adimplentes e inadimplentes. As grandes lojas comerciais passaram a lucrar mais com os juros do parcelamento dos pagamentos do que com a venda dos produtos. Em suas Memórias, entre o cínico e o inconsciente, José Dirceu apresentou como grande conquista da primeira administração petista a o “lento, seguro e gradual processo de expansão do crédito para a base da pirâmide social e de bancarização de dezenas de milhões de brasileiros” que massacrou e massacra a população do país. [p. 364]

As exportações sobretudo de produtos primários para a China permitiram que a economia brasileira vivesse, em forma atrasada, o final daquele círculo virtuoso, quando da segunda administração petista, período em que os capitalistas lucraram como nunca no Brasil, segundo o próprio Lula da Silva. A demagogia petista apresentou aqueles anos como verdadeiro paraíso do consumo, em que aeroportos e universidade encheram-se de trabalhadores, com destaque para os negros, anteriormente monopolizados por brancos, sempre privilegiados. Propôs-se que muito logo a população pagaria planos de saúde light, como os setores mais ricos da sociedade. O que desoneraria os investimentos no SUS, é claro.

Sobretudo, propôs-se como conquista histórica a distribuição de valores somíticos à população marginalizada pela exclusão capitalista, ação recomendada pelo FMI e  pelo Banco Mundial, para manter a paz social entre setores que jamais serão incorporados ao mercado de trabalho. Vivia-se, finalmente, a concretização do prometida “capitalismo social de mercado”, redenção final da ordem proposta no passado como decrépita e essencialmente injusta, a ser superada.

Somos Todos Ricos, uns Mais, outros Menos

A retórica demagógica petista, favorecida pela politização do próprio IBGE, encantou amplos setores da classe média de esquerda, não raro beneficiada pelas concessões marginais nesses tempos de benesses – valorização do real; bolsas de estudos; etc. Para manter-se na direção do Estado, o lula-petismo realizou alianças que sua nova natureza já não rejeitava como espúrias, compartilhando o poder com os segmentos mais decompostos da política brasileira. O abraço entre Lula da Silva e Maluf,  em 18 de junho de 2012, durante campanha de Haddad para a prefeitura de São Paulo,  foi apenas o beijo cinematográfico desse indecente contubérnio.

O lula-petismo manteve intocado o sacrossanto monopólio dos grandes interesses sobre a mídia. Cortejou religiosamente o movimento evangélico caça-níquel que explodiu como nuvem de gafanhotos sobre população desorganizada, desassistida e desesperada. Lula da Silva, Dilma Rousseff e Fernando Haddad, todos, ajoelharam-se na adoração ao Bezerro de Ouro [Edir Macedo] quando da inauguração do Templo de Salomão, talvez o maior centro mundial de assalto à população.  Por exigência do fundamentalismo evangélico, Dilma Rousseff desautorizou publicamente a discussão da diversidade sexual nas escolas públicas. Não houve privilégio e favores não concedidos aos cultos religiosos, em insistente desrespeito do caráter laico do Estado brasileiro.

As fantasmagorias petistas mantiveram-se sem dissolver-se no ar enquanto manteve-se o pleno emprego relativo, devido à conjuntura econômica virtuosa ou  à sustentação patológica  da expansão econômica, na segunda administração Rousseff.  No frigir dos ovos, jamais houve recuperação real do salário mínimo, sempre insuficiente para manter minimamente uma família. O acesso aos produtos de consumo rápido e duradouro deveu-se sobretudo ao endividamento familiar. Nas administrações petistas, as vagas nas universidades particulares superaram enormemente as das universidades públicas. Escancarou-se o país às multinacionais da educação superior e ao ensino de distância, praticamente sem qualquer controle.

O Espraiar do Anti-Petismo

Na Idade de Ouro petista, explodiu o massacre de jovens negros nas periferias das grandes cidades e a população prisional alcançou níveis estratosféricos, com destaque para a população afro-descendente. A violência dominou regiões urbanas e rurais onde  fora anteriormente fato episódico. Ao serviço do grande capital, o lula-petismo dedicou-se ao assalto dos bens  públicos, como faziam os partidos burgueses puro-sangue. O caixa-dois, o favorecimento de interesses, a busca de sucesso econômico e social na política tornaram-se fenômenos normais grande parte dos dirigentes petistas.

A denúncia da corrupção foi a arma preferida da direita golpista no Brasil, quando do golpe que levou ao suicídio de Getúlio; quando da vitória de Jânio Quadros, o homem da “vassoura”; quando da deposição de João Goulart.  A miséria e a desassistência da população em geral é assim apresentada como devido ao assalto ao Estado, e jamais como produto da espoliação do capital. Quando se decidiu apear o PT do governo, levantou-se o “sursis” que lhe garantira o assalto aos bens públicos, como os  partidos burgueses tradicionais.

A classe média foi duramente golpeada pela globalização e por políticas social-liberais que privatizavam os serviços públicos determinando que praticamente tudo se pagasse a preços crescentes – saúde, transporte, educação, lazer, água, luz, condomínio, segurança, etc. O que antes podia ser esnobismo privatista, passava agora a ser um encargo difícil de suportar. Esse mal-estar, ainda politicamente indefinido, foi um dos grandes motores das mega-manifestações de junho de 2013.

Não foi difícil à mídia monopólica responsabilizar por essa situação uma administração petista acusada incessantemente de saquear os cofres públicos e tudo conceder aos negros, nordestinos, camponeses, pobres, desempregados, funcionários, índios, assaltantes, homossexuais, etc.. Em fim, todos aqueles que pretensamente usufruíram das benesses do Estado, sem jamais trabalharem. Afinal, esse era a pretensa narrativa distributiva do PT, jamais realizada. Sob o martelar incessante da grande imprensa, fortalecia-se  o anti-petismo visceral, sobretudo –  mas não apenas – nas classes médias.

O Sentido Histórico do Golpe

A dificuldade em compreender o sentido do golpismo, posto em marcha havia anos, deveu-se em parte ao fato de que as administrações petistas concediam praticamente todas as reivindicações do grande capital – reforma da previdência dos funcionários públicos; internacionalização da economia; autonomia de fato do Banco Central; direito de livre ação para o capital financeiro; privatizações, inclusive do Pré-sal; manutenção do arrocho salarial, etc. Procurando manter-se no poder, Dilma Rousseff fez todas as concessões imagináveis e prometeu ir ainda mais longe. Uma iniciativa golpista contra os governos petistas não violentaria os próprios interesses do grande capital?

Para mudar de governo, não bastaria dessangrar Dilma Rousseff e esperar as eleições de 2018?Em verdade, o golpe pretendia muito mais do que radicalizar políticas conservadoras – já em aplicação – a um tal extremo que o lula-petismo era incapaz de fazer, sem anular-se como partido burguês com eleitorado popular.

A internacionalização e desnacionalização da economia nacional [globalização] chegara a tal extremo que permitia e exigia salto de qualidade que elevasse a situação semi-colonial a situação neocolonial globalizada. Ou seja, situação na qual as classes dominantes nacionais, já sem o controle das decisões econômicas centrais, perderão igualmente a autoridade sobre as decisões políticas fundamentais, nas quais participarão como meros associados subordinados.  Tratava-se de fenômeno estrutural exigido pelo capitalismo internacional, em fase senil, na luta pela extensão de sua hegemonia, para relançar o dinamismo perdido, a custa do arrasamento das nações subordinadas.

Situação que explica como o presente arrasamento, sem qualquer resistência das classes dominantes nacionais, de praticamente todo o capital nacional monopólico público e privado. Num piscar de olhos, as poucas empresas monopólicas nacionais restantes, construídas nos últimos cinquenta anos, foram ou estão sendo destruídas – grandes empreiteiras, Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Embraer, Friboi, etc. No Iraque e na Líbia, foi necessário a destruição militar do país para dominar as reservas petrolíferas. No Brasil, bastou apenas a corrupção direta ou indireta de deputados e senadores; uma mídia partícipe do negócio; uma oficialidade militar e judiciária fixadas apenas em suas benesses, para que o Pré-sal fosse entregue, sem que a pusilânime classe dominante nacional pronunciasse um pio!

O processo golpista em marcha almeja e já empreende formatação geral das instituições políticas, jurídicas, institucionais, etc. exigida pela nova dependência umbilical do país ao grande capital globalizado, sob a hegemonia despótica estadunidense, nascida e propiciada por transformações econômico-sociais em curso há décadas no país.  Um processo que circunscreve duas realidades em geral ignoradas. Primeira realidade. A atual ditadura do grande capital sobre o país, mesmo que respeite algumas aparências de democracia, constitui processo patologicamente infinitamente mais grave do que a ditadura de 1964.

Repúblicas Bananeiras

Vimos que sobretudo no período pós-1967, o país conheceu crescimento das forças produtivas que desembocou na fundação do PT, tendencialmente anti-capitalista, e da CUT classista.  A atual metamorfose institucional, sob o batuta do alto comando do exército de terra, aponta para a transformação colonial globalizada do país como mera plataforma de exportação de manufaturados, de grãos e minerais, sob o controle dos capitais internacionais, em geral, e do imperialismo estadunidense, em particular.

Os generais de hoje se despreocupam olimpicamente com a construção de um Brasil Grande, fixados nos proventos pessoais que a situação funcional lhes assegura. Tornaram-se, de oficiais nacionalistas de linha dura, que sonhavam com um país poderoso e odiavam os trabalhadores, em meros generais corruptos, habituais nas célebres repúblicas bananeiras latino-americanas, que têm como maior de consumo passar as férias e a aposentadorias em ricas mansões das praias da Flórida. Igualam-se aos anteriores no ódio-temor à classe trabalhadora.

Segunda realidade em geral ignorada. A hegemonia imperialista e a nova situação colonial globalizada impedem de per si a dominação do país por movimento ou ordem fascista, apoiados em ampla mobilização nacional-patriótica, sobretudo das classes média. Mobilização historicamente destinada a desarticular avanço político e social dos trabalhadores, o que não é o caso do Brasil. O mero ódio aos trabalhadores e à esquerda não alcança a manter movimento que exige igualmente estabilidade e progresso social, ainda que socialmente restritivo.

O imperialismo não deseja definitivamente a organização de blocos sociais amplos e coesos, que possam resultar em desvios nacionalistas, ainda que conservadores e anti-operários. O que não significa que não sejam promovidas tentativas de organização de massa, certamente apoiadas no fundamentalismo evangélico, e eventuais atos de violência extrema contra a esquerda e o mundo do trabalho, com a cassação de direitos democráticos e sociais fundamentais.

O Golpe Veio de Washington

Uma perspectiva retrospectiva permite vislumbrar as linhas gerais de um minucioso planejamento golpista, sob a orientação de órgãos estadunidenses – a tal de jamais acreditada super-conspiração. O projeto geral hoje em aplicação no Brasil foi inaugurado na Itália, quando da “Operação Mãos-Limpas” [“Tangentópolis”], que teve como seu grande xerife Antonio di Pietro, que pôs abaixo a Primeira República Italiana (1948-1994), com o desaparecimento dos partidos tradicionais, ensejando assim, em 1994, a abertura da Era Berlusconi, privatista e globalizadora. Esse script foi seguido estritamente no Brasil, tendo à grande mídia, com destaque para a Rede Globo, como chefe de orquestra visível.

A “Tangentópolis” tupiniquim foi denominada de “Mensalão”, devido a ter sido construída a partir da denúncia de reconhecido salafrário político de financiamento clandestino de deputados da “base aliada” petista, em 2005. Ou seja, há treze anos! A polícia federal teve participação ativa indireta na inauguração da operação. A parte de xerife da moralidade coube ao ministro Joaquim Barbosa, indicado ao STF pelo indefectível frei Beto, quando Lula da Silva buscava um negro para ser proposto como ministro do Supremo Tribunal! Barbosa foi sacralizado pela grande mídia como salvador da Pátria e o julgamento, sobretudo de José Dirceu, foi objeto de longuíssimos meses de saturação midiática digna de final de copa do Mundo disputada pela seleção canarinho.

Incapaz de apresentar qualquer prova material contra o putativo candidato petista à presidência, o ministro histriônico condenou-o a partir da “Teoria do Domínio do Fato”. A sinistra elucubração do jurista nacional-socialista Hans Welzel, em 1939, propõe que, mesmo na ausência de prova de que sabias/mandaste um subordinado delinqüir, por ser ele um teu dependente, serás condenado, já que devias saber. Ruía assim o “princípio de presunção da inocência”, pilar da tradição jurídica com raízes no direito romano, que determina tua inocência até a apresentação de prova material de culpabilidade. A participação impudorosa do STF, igualmente em frenesi midiático, registrou que a extensão da ofensiva golpista se permitiria “interpretações” aleatórias da ordem constitucional por aqueles que se podiam arrogar tal direito, mesmo não o tendo.

José Dirceu teve seu mandato de deputado cassado por quebra de decoro parlamentar, por pretensos atos praticados durante licença do Parlamento! Foi preso em 2013 e, novamente, em 2015, sendo condenado, em tudo, a mais de trinta anos de prisão e a multa de centenas de milhões de reais! Não conheceu qualquer defesa por parte do PT. Foi lançado às feras por Lula da Silva, pelos companheiros do grupo majoritário, pela direção da Articulação de Esquerda, pela chamada “esquerda petista”. Com as exceções de sempre. Todos na vã esperança que a alimentação excelente saciasse os vorazes leões, permitindo prosseguir o oba-oba dos grandes, médios e pequenos projetos eleitorais.

A esquerda pequeno-burguesa não restringiu elogios à condenação, acariciando seu eleitorado moralista e esperando recolher os cacos eleitorais do estraçalhar petista. Grupos auto-proclamados revolucionários lavaram-se as mãos diante da proposta de tratar-se pugna “inter-burguesa”, olvidando a obrigação de defesa dos direitos democráticos de quem for.

Apesar do “Mensalão”, Lula da Silva, eleito em 2006, consagrou-se embalado pela onda econômica expansiva mundial, circunscrevendo a alta possibilidade da reeleição do candidato petista, em 2010. Nesse ano, aprovou-se a “Lei da Ficha Limpa”, de “iniciativa popular”, inspirada por advogado que trabalha hoje para a Rede de Sustentabilidade, até há pouco financiada por herdeira do Banco Itaú. A lei entregava a uma Justiça que já registrara seu facciosismo indiscutível o poder de definir quem tinha direito a apresentar-se como candidato.

Segundo Ato – A Operação Lava Jato

Em março de 2014, no início do governo Dilma Rousseff, inaugurava-se, sob a iniciativa da Polícia Federal de Curitiba, a “Operação Lava Jato”, que consagraria nacional e internacionalmente a Sérgio Mouro como Tartufo-mor da comédia sinistra. Advogado de poucas luzes e cultura, com passagem marginal no “Mensalão”, ele participara nos USA do “treinamento” de advogados da “Harvard Law School”  e, pasme-se, do “Departamento de Estado dos Estados Unidos”, responsável pela implantação pelo bem e pelo mal da política estadunidense no exterior. Nos últimos tempos, Moro não se enfastia de visitar os USA, sob diversas desculpas ou sem elas.

Consagrado agora como o messias nacional, Moro empreendeu a literal destruição das grandes empreiteiras brasileiras, que dominavam mercados latino-americanos e africanos cobiçados pelas empresas yankees congêneres. Dedicou-se, sobretudo, à destruição do PT, em geral, e de Lula da Silva, em particular, para impedir sua candidatura presidencial.

José Eduardo Cardoso, ministro da Justiça de Dilma Rousseff, permitiu a libertinagem dos magistrados e policiais federais, em nome da autonomia de investigação e julgamento. A presidenta, chegada do PDT, dobrara a insistência de Lula e da direção petista de ceder a candidatura de 2014 ao ex-presidente. Ela despreocupava-se com a denúncia de corrupção petista anterior à sua administração. O enxame de irregularidades da acusação contra Lula da Silva revelou aos mais cegos os objetivos da Lava Jato sobretudo de retirá-lo da corrida eleitoral de 2018.

Após enorme despilfárrio de recursos públicos para assegurar a sua reeleição – renúncias fiscais; abatimento do preço da eletricidade; distribuição de bolsas de estudo no exterior, etc. – Dilma Rousseff venceu no segundo turno devido à viragem à esquerda, que apontou o caráter privatista e neoliberal do playboy tucano Aécio Neves. Nem que “a vaca tossisse” permitiria que tocassem os direitos sociais.

No dia seguinte à vitória, Rousseff empreendeu a talvez mais indecorosa escroqueria eleitoral da história brasileira. Sem delongas e mediações, empossou ministério conservador, lançou ataque aos direitos dos trabalhadores, determinou enormes cortes dos gastos sociais. Procurava manter-se no poder sequestrando o programa liberal do opositor vencido, como Lula da Silva fizera com sucesso anteriormente. O golpe porém avançava a trote-galope.

A Luta contra o Golpe

A presidenta e o PT lançaram mão das manobras políticas tradicionais para defenderem-se do impeachment. Tentaram comprar votos no Congresso e no Senado e demonstrar a disposição de avançar o programa do grande capital. Julgada e condenada, por operação financeira corriqueira e sem consequências, apresentou-se para defender-se no Senado e recorreu ao STF golpista, legitimando os seus algozes. Foi premiada por sua passividade com a isenção da perda dos direitos políticos. A classe trabalhadora foi a grande ausente do drama em curso – não foi chamada e não se mobilizou contra ou a favor do impeachment.

Defenestrada a presidenta, em 30 de agosto de 2016,  assumiu plenamente Michel Temer, o rei-bufão do transformismo e da corrupção, disposto a implementar sem travas os projetos golpista. Vinte dias antes, Fernando Haddad se consagrou com a frase de que “Golpe é uma palavra um pouco dura”, para a derrubada de Dilma e entronização do rei da mesóclise. O professor pertencia à enorme facção dos capa-pretas petistas que sonhavam com “virar a página” do impeachment e voltar à vida política normal, sob a nova ordem de coisas. Em geral, o PT e a esquerda pequena-burguesa e a auto-proclamada revolucionária não compreenderam – ou fizeram que não compreenderam – que o golpe objetivava metamorfose estrutural do país.

Sob iniciativas sucessivos de extrema violência, que lançaram o país em depressão e desemprego profundos – Reforma Trabalhista, PEC do Fim do Mundo, etc. –, cresceu e se fortaleceu o movimento contra o golpe, sob a consigna de “Fora Temer”. O PT procurou enjaular as mobilizações na palavra de ordem “Volta Dilma”.  Segmentos do PSOL negaram o golpe e entoaram loas à condenação de Lula da Silva. O PSTU viu tudo como disputa entre facções burguesas, apoiando a queda de Dilma e propondo fantasiosa deposição de “todos os outros”. A greve geral de 18 de abril de 2017 garantiu salto de qualidade na luta contra a reforma da previdência e trabalhista e o governo golpista, que via subir em flecha sua rejeição nacional.

A mobilização crescente foi desmontada em prol da proposta de fixação eleitoral da oposição.  Em 26 de agosto de 2017, em discurso em Salinas, em Minas Gerais, Lula da Silva determinou “que já não” era “mais o momento de pedir a saída antecipada [sic] de Michel Temer […], mas de defender o nome de um novo presidente” para as eleições de outubro de 2018. O “Fica Temer” reconhecia o governo golpista e lhe garantia sursis até a conclusão do mandato ilegal. Sobretudo, legitimava as eleições fraudulentas, objeto dos desejos de milhares de políticos do PT, PCdoB, PSOL e outros desvairados. “Lulinha paz e amor” vestia novamente a capa de pacificador social, esperando certamente que sua intervenção e designação como candidato fortalecesse sua defesa no processo bichado da “Lava Jato”. A traição à oposição popular contra o golpe resultaria na derrota histórica de outubro de 2018.

O Plano B e os Senhores Generais

Como não podia deixar de ser, Lula perdeu a corrida viciada para sua viabilização como candidato, devido à lei da “ficha limpa” e a toda sorte de atos ilegais por parte da Justiça, já abraçada sem qualquer pudor ao golpismo e, muito logo, sob a pressão militar direta. Em 7 de abril de 2018, o ex-presidente era preso, por determinação do aprendiz de Torquemada paranaense, sem o esgotamento dos possíveis recursos, como exige a Constituição. Rodeado por alguns milhares de trabalhadores que acorriam abundantes, ainda que não em forma fluvial, preferiu entregar-se pateticamente, declarando confiar na Justiça, do que opor resistência passiva e esperar os carcereiros no sindicato dos Metalúrgicos.

Seu convite de 26 de agosto de 2017, na terra da melhor cachaça mineira, fora já seguido por seu partido e por todas as forças da esquerda eleitoral. Enquanto Temer manteve-se tranquilo, esquecido, na presidência, o desbunde eleitoral prosseguiu, dando-se pouca atenção à prisão do ex-metalúrgico, ex-sindicalista e ex-presidente, engaiolado em Curitiba, sob todos as restrições. Por sua libertação, moveram-se poucos, com destaque para o MST e o pequenino PCO, fixado na liberdade de Lula e na defesa de que eleições sem ele seriam uma farsa ainda maior.  A designação de Lula como candidato do PT ao extremis foi combatida por importantes segmentos da direção petista, que optavam por indicação mediata de candidato, que virasse melhor a página do golpe, esperava-se. Entre eles, se destacava Fernando Haddad.

Em 11 de setembro de 2018, devido a imposição  ad hoc da Justiça eleitoral, o PT designava Fernando Haddad, doutor em filosofia, ex-prefeito de São Paulo, tido como o “mais tucano dos petistas”, como candidato em substituição a Lula da Silva. Ele fora o coordenador do programa petista que primara pelo bom comportamento. Em 13 de abril, na véspera do julgamento do habeas corpus impetrado por Lula da Silva, junto ao STF,  o comandante do Exército, o general Eduardo Villas Boas, ameaçou com intervenção militar, no caso do acolhimento daquele recurso. Punham-se igualmente sobre controle militar o STF e a instituição do “habeas corpus”.

Michel Temer, reduzido a um espectro de presidente, fora obrigado a transferir a direção geral de seu governo ao alto comando militar, através do general Etchegoyen, direitista entre os direitistas, designado à cabeça do recém recriado Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

A autonomia de decisão dos generais sobre as forças armadas, já sem qualquer controle civil de fato, e a hegemonia militar sobre a Polícia Federal, o Parlamento e a Justiça se expressaram em forma indecente na exigência da designação de “consultor militar” para que o camaleônico ministro [ex-petista] Dias Toffoli assumisse a presidência do STF.

Um dos seus primeiros atos na poltrona já esvaziada de poder real foi declarar que os sucessos de 31 de março de 1964 deveriam ser definidos como “movimento de 1964” e não como golpe militar. Se for necessário, proporá que os prisioneiros políticos torturados naquele então no pau-de-arara eram simplesmente submetidos a exercícios de alongamento!

O regresso dos generais ao comando da ordem civil apenas explicitou a natureza profunda das forças armadas, que prosseguiram cultuando o regime militar de 1964, sob a complacência total dos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff. As administrações petistas jamais expurgaram das forças armadas e levaram a julgamento os culpados de crimes contra a humanidade, que prosseguiram suas carreiras, dedicados a manter em alto a tradição direitista e golpista das mesmas. Aqueles governos apresentaram igualmente os militares à população como solução para os problemas atinentes à segurança civil. Responsabilizaram-se, a pedido dos USA, pela direção da ocupação militar do Haiti, verdadeiro ensaio geral do golpismo. A operação teve como um dos seus comandantes o sinistro general Augusto Heleno.

Bastava Vencer as Eleições

Para não poucos esperançosos, tratava-se, agora, apenas de transferir as intenções de votos de Lula da Silva para Fernando Haddad, ir e vencer o segundo turno, para que tudo voltasse a ser como dantes, ou quase, nesse país abençoado por deus. Compreende-se por que milhões de brasileiros jogam semanalmente na Loteca, esperando o irrealizável.

No script geral, as eleições constituíam apenas a trilha que levava inexoravelmente à legitimação do processo de metamorfose golpista das instituições do pais. A não ser no caso de uma mui improvável explosão popular, não se previa outra possibilidade de vitória do que um candidato afinado com o golpismo. Para que tudo desse certo, afastara-se, antes de tudo, Lula da Silva, candidato capaz de galvanizar o desespero popular, mesmo que não vencesse as eleições capengas.

Com a tradicional desfaçatez, a totalidade da grande imprensa abraçava o golpismo. O mesmo fazia, com igual despundonor, a grande e média Justiça, com destaque para a eleitoral, que já iniciara havia muito a prestar seus serviços, a formatar meticulosamente os procedimentos eleitorais favoráveis ao golpismo. Polícias federais e estaduais prestavam e prestariam seus valiosos préstimos.

As igrejas evangélicas, o empresariado, o diabo a quatro, dispunham-se a violar, sem pruridos e temores, a lei eleitoral. A revelação sem decorrência dos blocos de whatsapps comprados por milhões de reais por grandes empresário materializou esse direito. E, se fosse necessário, estavam à disposição as urnas eletrônicas, para a pertinente manipulação, e os generais do  exército, para assegurarem que tudo daria certo.

Apesar de tudo isso, a intervenção na campanha presidencial permitia oportunidade excepcional para uma muito dura e intransigente denúncia da ordem golpista anti-popular, da pusilanimidade da Justiça, do controle total da mídia pelo grande capital, do assalto militar e do imperialismo ao controle das rédeas do país. Uma campanha que desnudasse a farsa eleitoral e conclamasse a população à necessária luta anti-golpista. Como estava inscrito nas nuvens, não apenas o PT optou pelo caminho oposto, disseminando  sonho anestesiaste de desarmar o golpismo com vitória eleitoral. Fábula que exigia o enquadramento sem muxoxo à farsa eleitoral. A grande preocupação era salvar os aparelhos partidários e seus eleitos, na nova ordem.

O Candidato Ideal

Fernando Haddad adaptava-se maravilhosamente ao papel proposto. Relativamente jovem, bonito, inteligente, bem articulado, conhecido por moderação que lhe permitiria integrar eventual ala autêntica do MDB ou PSDB, já se pronunciara reiteradas vezes em favor de “virar a página” e retornar à vida política normal, apesar dos sucessos que ele tinha dificuldade em definir como golpe. Foi um verdadeiro gentleman.

Durante toda a campanha, jamais denunciou o golpe. Jamais se referiu ao facciosismo da grande imprensa e, sobretudo, ao desbunde do STF e da justiça eleitoral. Comportou-se como se tomasse chá entre educadas senhores e não como sentisse o fio agudo da navalha de sicários no pescoço.

Mas fez mais. Atemorizado, renegou, por três vezes, o Nordestino, sem porém se arrepender, como o bom Pedro. Na primeira pressão, jurou não anistiar Lula da Silva, prisioneiro da ilegalidade golpista. Sugeriu, igualmente, que, se condenado em última instância, haveria que aceitar sua culpabilidade, esquecendo-se dos julgadores morféticos. Chegou ao extremo de elogiar Moro, o torcionário das leis, carrasco do ex-presidente, pelas coisas boas que fizera para o país. Certamente até o coronel Ustra algo de bom fez em sua via, ao menos uma vez, nem que tenha sido por engano!

Haddad atravessou o Rubicon  da legitimação do golpe, não uma, mas múltiplas vezes. Talvez a mais emblemática tenha sido, em 20 de junho de 2018, antes de sua designação oficial, quando da visita ao ditador das sombras, o general Villas Boas, que fez a questão de postar em sua conta do   twitter  o beija-mão subserviente de Fernando Haddad, a quem já se referiu como “pré-candidato à presidência”. Reconheçamos o sentido de humor cínico no general.  No desenvolvimento da campanha, beijou igualmente a mão de Joaquim Barbosa, legitimando o Mensalão, como mera luta contra a corrupção, e o julgamento ilegal de José Dirceu, com quem se esforçou de se distanciar, além do imaginável.

O Fenômeno Bolsonaro

Cremos que os candidatos preferenciais do imperialismo e do grande capital foram sempre Alckmin, Meirelles e Amoêdo. A enorme crise econômica causada pela voracidade incontida do golpismo, aprofundada pela inesperada greve dos caminhoneiros, iniciada em 21 de maio de 2018, lançou a economia no buraco e o desemprego nas nuvens, fazendo renascer relativamente o prestígio eleitoral de Lula da Silva, identificado aos bons anos da segunda administração. Perdia-se assim a esperança da ilegalização do PT como “associação criminosa”, proposta no início do golpe. Mesmo machucado, o petismo ganhou hipotética segunda vida, elegendo a segunda bancada na câmara e três governadores, na Ceará, na Bahia e no Piauí. Se vão levar, apenas o tempo dirá.

As candidaturas associadas ao golpe e ao governo Temer não deslancharam, com destaque para a de Geraldo Alckmin, que morreu afogado na areia da praia, sem dar uma braçada no mar. O movimento de opinião pública avançou Jair Bolsonaro, o Coiso, do PSL, tradicional parlamentar histriônico da extrema-direita, que obtivera o apoio de alguns empresários isolados de peso, interessados em qualquer coisa como a restauração da escravatura. Ele fora sempre o preferido dos segmentos médios extremistas das forças armadas e policiais, sua base eleitoral no Rio de Janeiro.

Ao despontar como candidato golpista prioritário, a grande mídia e os empresários, da Justiça, do Exército e dos segmentos direitistas médias, seguindo suas naturezas profundas, abraçaram forte e sem constrangimento o capitão desengonçado. Houve igualmente forte deslocamento do voto popular, que se identificou ao seu perfil populachero, desbocado e “apolítico” e às propostas de solução imediata da corrupção e sobretudo da criminalidade, através de medidas expeditas,  apoiadas na violência policial e na ocupação das ruas pelo exército. Soluções irrealistas, para problemas sociais ingentes, nascidos da miséria popular material e espiritual,  mas próximas à muito difundida sub-cultura da violência, apoiada e explorada pela mídia há décadas.

Fascismo contra a Democracia

O esforço petista de apresentar o segundo turno como literal embate entre o fascismo e a democracia, para conquistar os votos da direita “republicana e democrática”, registrou as ilusões nas classes dominantes brasileiras, habituadas há séculos na submissão despótica e no massacre das populações plebéias, para melhor defender seus privilégios. No que são acompanhadas por segmentos médios que com elas identificam, acreditam assim a elas se integrarem.  Os olhares sedutores lançados por Fernando Haddad a FHC parecem olvidar que o intelectual pernóstico procedeu à liquidação geral de enorme parte do patrimônio nacional, a preço de banana podre. Tais trejeitos apenas concedem indevida certidão de cidadão democrata a um verdadeiro assassino serial da nacionalidade brasileira.

Bolsonaro e seus apoiadores e eleitores mais extremados não são fascistas, no sentido preciso da categoria. Certamente poderemos esperar o pior de um seu governo, se não conhecer oposição consequente do movimento social e da cidadania. Entretanto, ele é político elevado à presidência por fenômenos conjunturais, que não conta com base social de apoio sólida entre a população. Os senhores generais, sob a batuta do imperialismo e do grande capital, jamais lhe entregarão o poder real sobre o país. Tentarão, certamente, fazer dele um instrumento, de tempo de uso indeterminado.

Haddad, tentando conquistar os segmentos conservadores ilustrados, literalmente despreocupou-se com a população, esforçando-se para não se comprometer com ela com nada de concreto e palpável, que o expusesse à crítica da grande mídia e à birra do grande capital. Já no primeiro programa eleitoral do segundo turno, mandou Lula da Silva às calendas e despiu-se da incômoda cor vermelha do petismo, da CUT e dos trabalhadores, para ornar-se com o verde-amarelo, herança da bandeira escravista do império. Esqueceu-se que a população brasileira não gosta dessas metamorfoses súbitas.

Passou a realizar a autocrítica petista exigida pela imprensa conservadora, aceitando o acirramento do anti-petismo histérico como devido aos erros cometidos, com destaque para a corrupção, sem se referir à intoxicação deletéria incessante da grande mídia. Revelou sonhar com um grande empresário para a Fazenda e, deus permita, Joaquim Barbosa, o Capa Preta, para a Justiça. Elogiou Moro. Comprometeu-se com mais uma contra-reforma da previdência, para a “convergência dos dois regimes”, igualados na penúria. Renunciou à proposta de Constituinte, de limite temporal para os juízes, de desmilitarização da polícia e de descriminalização das drogas. Reafirmou a “autonomia” do Banco Central.

Sobretudo, não deu um pio sobre a ação golpista do parlamento, da Justiça, da imprensa, do Exército, dos grandes empresários, etc. que transformou as eleições em uma monstruosa farsa. Contribuiu assim para a exigência que já se apresenta de reconhecimento dos resultados das eleições como produto do límpido exercício dos direitos democráticos. Mantendo o perfil de bom moço respeitador da ilegalidade, apostou enorme parte da poupança que não era sua, sabendo que, mesmo se ganhasse na roleta viciada, por azares insondáveis da sorte, não levaria o prêmio para casa, devido à truculência do porteiro fardado.

Lomba do Pinheiro, Viamão, RS, 24/10/2018

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