Destino do Presidente: Decidir ou Obedecer?

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Poder de Extraditar: Realidade e Fumaça

No dia 18 de novembro, o STF teve uma agitada sessão posterior ao voto do parecer favorável à extradição de Battisti. Na segunda parte foi colocado um problema que não era da alçada do judiciário: o parecer do Tribunal favorável a extraditar é apenas uma autorização, ou constitui uma ordem que o executivo deve obedecer?

Talvez, foi a primeira vez que uma Suprema Corte votou algo que já era consenso legal e jurídico, mais ou menos como se julgasse se o mandato do presidente deve durar quatro anos, ou que o sistema político de Brasil é o republicano. Essa foi a primeira vez que foi votada uma redundância, mas dois meses antes o STF tinha votado uma ilegalidade, o que é bem mais grave: a anulação de um refúgio, um ato absolutamente privativo do governo.

As lideranças do Supremo mostraram que gostam dos extremos. Ao votar contra o refúgio dado por Tarso Genro a Battisti incorreram numa contradição, pois um órgão judiciário não pode rejeitar algo que não está sujeito a sua competência. No outro pólo, ao votar a favor do direito do presidente de executar ou negar a execução da extradição, aprovaram uma tautologia, pois esse direito do executivo já estava explícito na lei, e superexplícito na jurisprudência.

Votar uma redundância não tem por que ser ilegal, como é votar em favor de uma contradição. Talvez não exista legislação sobre “como votar coisas já aprovadas”, porque ninguém deve ter pensado que tamanha insanidade pudesse ser colocada em discussão, mas também não deve afetar a verdade já aceita.

O assunto do direito do presidente da república a executar ou rejeitar a extradição, depois de que sua viabilidade tivesse sido aprovada pelo judiciário, favoreceu a ocorrência de numerosas confusões, cumprindo assim a finalidade que se tinha proposto a liderança do STF.

A primeira confusão veio do próprio presidente do tribunal, que tentou fazer duvidar ao ministro Eros Grau sobre seu voto. Pelo que deu para entender, Grau é um hermenêutico, chegado a discussões filosóficas e especulações no estilo de Hans-Georg Gadamer (ao qual, por sinal, mencionou explicitamente).

Isso fez com que a justificação de seu voto aparecesse um pouco nebulosa e retórica, mas, mesmo com essa dificuldade, não ficava dúvida de que ressalvava para o presidente da república o direito à decisão e não endossava a teoria de que Lula seria o moto-boy do Supremo. O presidente e o relator tentaram confundi-lo de uma maneira sofística tão extrema que provocou a reação do pacífico ministro. Este deveu levantar-se e garantir que seu voto era o mesmo que o de Ayres Britto (o único favorável a extradição que, no entanto, ressalvava para o presidente da república o direito de decisão) e dos outros magistrados.

Aquilo não foi suficiente: num estilo desconhecido dentro de um colegiado jurídico, o relator ameaçou literalmente aos que votavam em favor dos direitos do executivo, de que podia desencadear-se uma crise institucional. Ainda alardeou que, estando Battisti sob tutela prisional do STF, o prisioneiro poderia não ser liberado. Quando parecia que nenhuma ameaça funcionava, quis mostrar seu desprezo dizendo que não sabia como redigir o acórdão, porque a decisão era incompreensível.

Por que aconteceu tudo aquilo? Se o STF tivesse acatado a Constituição Federal, e algumas leis (como Estatuto do Estrangeiro) onde se argumenta sobre extradição, poderia ter omitido o julgamento do que já era conhecido. Mas, nesse caso perderia a oportunidade de anular, de maneira explícita, o direito de decisão do presidente. E uma oportunidade dessas seria ótima como vitória final. Todos sabiam que o presidente do Brasil, apesar daquela decisão do Supremo, teria direito de execução ou rejeição, mas teria sido quase impossível avançar contra um acórdão explicito do tribunal. É claro que eles não esperavam o voto de Ayres Britto. Seu estilo calmo e sossegado talvez os induziu a pensar, erradamente, que poderiam assustá-lo.

Mas, suponhamos agora que o resultado tivesse sido diferente. Que o relator ganhasse a parada, e já estivesse comprando uma moto para Lula. O que teria acontecido nesse caso?

Se a cúpula do tribunal tivesse conseguido anular o direito do presidente a decidir, estaria modificando a CF, a lei de estrangeiros e toda a jurisprudência. Intuitivamente, qualquer leigo como eu pensaria que uma ação judicial que agride as leis e a Constituição deve ser revogada. Muito simples. No entanto, quem revogaria? O Supremo é a máxima autoridade. Ninguém poderia julgar seus atos ilegais, como ninguém derrubou sua igualmente ilegal anulação do refúgio. Isso é um exemplo do que o ministro Marco Aurélio chama “ditadura do judiciário”.

No fundo, o Supremo não age como um órgão jurídico, mas como uma tropa de choque. Sua força física não se percebe em seguida, porque está muito diluída. Detrás desta configuração atual do STF estão os setores mais sórdidos da política, o lobby militar, os interesses internacionais, as grandes fortunas e, neste caso, a máfia peninsular.

Não sabemos se o presidente Lula teria ou não aceito o cerceamento de seus direitos, mas, durante sua viagem por Itália, afirmou que se o parecer do STF era obrigatório, ele o cumpriria. Foi uma reflexão triste, à qual qualquer cidadão tem direito. Mas, seja como for, foi uma reflexão perigosa. O homem que angaria mais do 60% dos votos, e mais do 70% da popularidade, se curvaria a uma panela de quatro descendentes de Torquemada? É preferível nem pensar sobre esta possibilidade.

Mas, apesar disso, sabemos que uma mutilação dos direitos do presidente não ia passar tão tranquila como o Supremo parecia supor. Um grupo significativo de pessoas prestigiosas estava disposto a iniciar uma ação internacional. O fato de que isso não tinha sido necessário é uma vantagem. Entretanto, a absoluta arbitrariedade da corte de “modificar leis” é um fato assustador que poderá repetir-se.

A “decisão” do STF de não obrigar Lula a obedecer produziu reações ainda mais descabidas. Um senador do partido dos jagunços criticou o STF por “lavar-se as mãos”, pretendendo assim que o tribunal teria direito de transformar o presidente em garoto de recados. Já os politiqueiros mais calejados se limitaram a ironizar sobre o direito de Lula a recusar a extradição, pois levantar uma objeção mais sofisticada excedia suas limitadas mentes.

O senador Sarney, veterano no uso do poder público como patrimônio pessoal, disse simplesmente que Lula deveria extraditar Battisti. Uma afirmação semelhante fez o vice-presidente, porém em seu tradicional estilo grotesco, diferente do estilo dramático de Sarney. Para Alencar, cuja aliança com Lula foi o primeiro sinal de alarma sobre o destino do governo, o país não é uma fazenda, mas uma empresa, como disse publicamente, e para sermos mais precisos, deve ser um varejão. Figura patética, atrasada e obsoleta ainda dentro do capitalismo, era muito natural que se pronunciasse pela extradição de Cesare. No entanto, como o assunto não lhe rende nenhum dividendo, não insistiu muito nesse aspecto.

Entretanto, embora as forças mais obscuras fora e dentro da base aliada se fingiram de indignadas pela possível não extradição de Battisti, os juristas interpretaram corretamente o que tinha acontecido. O STF simplesmente arrumava uma confusão para tornar as coisas mais difíceis, pois o poder do executivo para impedir uma extradição era absoluto desde sempre. O que não é discricionário, porém, é o direito do executivo a extraditar.

Obviamente, um parecer negativo do STF deve impedir uma extradição, porque justamente o objetivo (teórico) da justiça é proteger os direitos dos indivíduos. De fato, antes desta nova era do STF, pensava-se que o judiciário visava a defesa dos cidadãos e não seu prejuízo.

O Texto Constitucional

A Constituição Federal, em seu inciso 4º,X, não se limita a reconhecer o direito de asilo, mas o coloca como um dos princípios que regem a república no campo internacional, junto a direitos humanos, auto-determinação e outros axiomas básicos de um estado soberano moderno.

Nos incisos, 84º, VII e VIII, a Constituição incumbe ao presidente da totalidade das Relações Internacionais.

Aliás, no inciso XII, o presidente é autorizado a conceder indulto e comutar penas, um fato que até agora mereceu pouca observação, salvo a do jornalista Rui Martins. Pode existir alguma dificuldade técnica para encontrar a fórmula exata, mas uma pessoa privada de sua liberdade está sendo punida, como é o caso atual de Battisti. A figura do indulto deveria poder aplicar-se, em algum sentido, para acabar com essa prisão.

Quanto à bravata do presidente do Supremo, sobre o eventual recurso ao impeachment contra Lula (do qual o mesmo chefe reconheceu a dificuldade), está totalmente afastada pelo artigo 85º.

O único delito que (mesmo de má fé), o STF poderia invocar contra Lula, seria uma violação do inciso II, no sentido de obstrução ao poder judiciário. Dou este exemplo porque tenho certeza que é o caso que os padrinhos devem ter pensado como uma maneira de colocar Lula na ilegalidade.

Entretanto, seria necessária uma indigência ética e mental arrasadora para que alguém pudesse coincidir com isso. O judiciário atuou com toda liberdade, e com marcada exorbitância, no caso Battisti, sem que ninguém tentasse interferir. Inclusive, a resignada frase de Lula (de que obedeceria ao STF se seu parecer fosse obrigatório) apesar de ser lesiva a um sistema baseado no voto popular, deve ter sido lisonjeadora para os ditadores togados. Era reconhecer a superioridade da inquisição sobre o eleitorado.

Não existe nenhuma cláusula da lei ordinária ou a constituição que diga:

O Presidente pode ser acusado de crime de responsabilidade, se ele realizar um ato para o qual foi autorizado pelo STF, mas cuja realização não é agradável para quatro de seus juízes.

Talvez, em algum momento, o Supremo consiga uma maioria parlamentar que aprove essa lei (ou, quem sabe, um general disposto a recuperar as glórias de 1964). Por enquanto, não existe tal lei, e não há uma maneira de processar o presidente.

Como já dissemos, todos os assuntos internacionais são geridos pelo chefe de Estado, que num país presidencialista é o presidente. Ora, a extradição é um processo internacional, mesmo que o refúgio/asilo não o seja.

Seja em sua forma ativa ou passiva, a extradição consiste numa interação entre um país suplicante (que é o ativo) e um país suplicado (o passivo), sendo portanto uma relação internacional, mesmo apenas bi e não multilateral.

No relatório do caso Battisti, se comenta no estilo cafona que caracteriza todo aquele teratoma jurídico, que a Constituição dá direito absoluto e privativo ao STF para decidir sobre extradição, e que pretender usar esse direito pelo executivo e tal e qual … maldade (não lembro o termo exato em juridiquês).

Esse drama está deflagrado pelo inocente artigo 102, inciso I,g, onde diz que cabe ao STF processar e julgar primariamente a extradição.

O sentido é claro: uma extradição deve ser avaliada em seus aspectos jurídicos, e o STF é a instância direta à qual é dirigida. Poderia acontecer, obviamente, que um governo tente extraditar uma pessoa em condições ilegais, por exemplo, para um país onde sua vida está em risco, sem que o requerente explique suas razões, etc.

Ou seja, isto seguiria (teoricamente, é claro; a prática é outra coisa) o princípio básico da justiça de proteger o cidadão contra abusos de poder. E, pela mesma razão, é claro que a recíproca não vale: o presidente não pode extraditar alguém que não merece extradição, mas não está obrigado a extraditar a alguém que, segundo o critério do STF, mereceria.

As Leis Ordinárias

A Lei 6815 de 1980, conhecida como Estatuto do Estrangeiro dedica todo seu título IX ao problema de extradição. O artigo que os magistrados consideram seu anjo protetor é o 83:

“Nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo recurso da decisão.”

É um hábito do bacharelismo que domina desde a criação das Universidades de Paris e Bologna basear o direito no trivium das chamadas artes liberais (acompanhado pelo quadrivium, que agora não é necessário lembrar).

Os três componentes desse trivium são a retórica, a lógica e a gramática, o que mostra que para aqueles goliardos que fugiam  dos impostos e de suas obrigações clericais, analisar a linguagem, decidir a validade dos raciocínios e “enrolar” os outros com conversa eram similares.

A supervivência desses princípios na prática do direito atual é assustadora. (Todas as ciências já substituíram totalmente o latim pelas línguas vernáculas no século 18.) Mas isso também explica a lógica fóssil do mundo leguleio. O texto do artigo 83 não deixa dúvidas de que apreciação do STF é necessária para que se possa executar o refúgio, porém não suficiente.

A expressão “nenhuma extradição” é transparente. O nenhum significa que toda extradição precisará da autorização do STF para ser executada, uma típica condição necessária. Um simples conhecimento da lógica dos estóicos (que é apenas dois séculos posterior à de Aristóteles, mas não bem conhecida porque os estóicos eram ateus), permite entender a equivalência entre as duas formas.

Se o parecer do STF também fosse suficiente, então, entre outras possíveis formas, deveria usar uma como: “Toda extradição aprovada pelo STF deverá ser executada”.

De passagem, observe que é respeito da extradição que o STF tem a exclusividade para tipificar o delito, e não para o refúgio. Novamente, as excelências sofrem uma confusão, esta um pouco mais evidente.

No relativo à jurisprudência, não precisamos dizer nada porque este assunto foi falado dúzias de vezes desde 18 de novembro, e mesmo desde antes. Inclusive, a jurisprudência foi o que mais invocaram os juízes favoráveis aos direitos do governo, porque era “material da casa”, bem conhecido e até elaborado por alguns dos presentes. Inclusive, dois deles citaram writs da sua própria lavra, quero dizer… textos de sua própria autoria.

Quais dos 5×4?

A “cúpula” do STF faz uma tempestade com tornado e tudo numa colher de água. Em 200 anos, o presidente sempre obedeceu aos pareceres do Tribunal. Por que agora vai mudar?

Se o presidente não tem opção para mudar, qual é a graça de que o próprio STF tenha votado em favor de seu poder de decidir? Foi apenas mover-se um ministro da linha da extradição para a linha do poder presidencial, e temos dois placares de 5X4.

Se o último não é para levar a sério, por que o primeiro seria? Ou, afinal, o Supremo deu esse poder a Lula para que fique contente, e não ande dizendo que o judiciário esconde seus brinquedos?

Embora toda esta infame farsa se preste a situações cômicas, a situação, na realidade, é trágica, e muito.

Vejamos a linha do tempo.

1)      O Embaixador de Itália, junto com a máfia à qual representa, e os milhões de ressentidos e revanchistas, querem a cabeça de Battisti.

2)      As figuras mais fortes do STF se preparam a ajudar. Afinal, estamos aqui para ajudar os amigos ou para essa coisa que ninguém sabe o que é: “justiça”?

3)      Primeiro passo: o direito ao refúgio deixa de ser ato soberano. O governo é colocado no banco dos réus por ter refugiado alguém que o STF e seus patrões não gostam. Genro pode dar graças de Deus que Gilmar e Peluso foram tão bonzinhos de não enfiá-lo na cadeia.

4)      Pronto, várias palavras em latim e português arcaico e se acabou o refúgio.

5)      Estamos com as mãos limpas. Sem refúgio, sem obstáculo para a extradição.

6)      Votemos pela extradição: 5X4. Bingo!

7)      Por razões ignotas, um ministro que votou pela extradição, age com insuperável sensatez e nega ao tribunal o direito a mandar lula a extraditar sob ameaça de um cascudo.

Aqui acaba a linha do tempo. Aqui já os quatro grandes estão indignados. O que isso? O presidente vai desobedecer ao supremo? Bom, mas isso foi votado. Não interessa! Como disse Gilmar Mendes; não tinham quorum completo. Podemos votar de novo, declarar isto não válido, enfim… o diabo a quatro!

Como pode um país de qualquer tamanho, aliás, como pode um estado, um município, até um condomínio de apartamentos, ser dirigido por pessoas tão desprovidas de princípios, possuidoras de tanto cinismo?

Se o povo e os políticos saudáveis deste país não acordam, o futuro pode ser muito ruim. A ditadura do judiciário, prevista pelo ministro Marco Aurélio é, segundo ele, a pior de todas. E, se ainda hoje temos feridas abertas da ditadura militar, quanto demorarão em fechar feridas piores?

Aliás, a ditadura militar acabou… Mas, pode ser que a do judiciário não acabe nunca, salvo que a sociedade acorde. Pensemos que aqui, se aplicam como nunca os famosos versos de Brecht: “É preciso agir”.

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